sábado, fevereiro 25, 2006

Como a mídia ataca a liberdade.




Fonte:


Software x direitos autorais





Pedro Antônio Dourado de Rezende
professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança na Inoformática da UnB, ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley (EUA), representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil)





A Gazeta Mercantil de 21.12.2005 nos brinda, em matéria assinada por Carlos Eduardo Valim, com ilações que nos levam a indagar sobre o papel atual do jornalismo corporativo. A matéria assim começa:

"A Microsoft, a maior vendedora global de licenças de software, reforça sua defesa da criação de software como direito autoral. Isso implica que as licenças de uso sejam tratadas como uma cessão de propriedade intelectual. Segundo o gerente de programas acadêmicos da Microsoft Brasil, Rogério Panigassi, esse nem sempre é o entendimento do tema no Brasil e a empresa deve incentivar o registro de patentes de software"

Não é preciso ir muito longe para entender por que, no Brasil, nem todos entendam que "licenças de uso [de software] sejam tratadas como cessão de propriedade intelectual". Primeiro, porque o termo "propriedade intelectual" é demasiadamente ambíguo. Serve apenas para ensacar com um mesmo rótulo uma gama de jurisdições distintas, que têm em comum apenas o fato de seus objetos serem bens intangíveis, de natureza simbólica.

O termo serve, portanto, apenas para dificultar a compreensão do que, exatamente, se pretende dizer. Seria o direito autoral, que protege uma obra intelectual -- como o software -- através de licença de uso? Seria o direito industrial, que protege uma invenção através de patente? Seria o direito marcário, que protege marcas de produtos? Na citação acima, as duas primeiras são referenciadas na mesma sentença.

Mas qual seria a diferença entre as duas coisas referidas (obra intelecutal e invenção), em se tratando de software? A pergunta é importante porque não se espera, de um leitor de jornal dedicado à economia, um compreensão profunda do Direito. Seria o software uma obra intelectual, protegível pelo direito autoral, ou seria o software uma invenção, protegível por patente?



Lei Claríssima

Quando uma empresa multinacional que vende licenças de uso de software reforça, num jornal sobre economia, a defesa de suas criações com amparo no direito autoral, ela se conforma ao correspondente ordenamento jurídico Brasileiro, insculpido na Lei 9609 de 1998, cujo artigo 2° reza:

"O regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta Lei."

E cuja leitura conduz, naturalmente, o leitor interessado em superar o "desentendimento" brasileiro sobre o tema a indagar: Seria o registro de patentes de software um direito conexo ao direito autoral para softwares?

A lei que rege o registro de patentes no Brasil é a Lei 9279 de 1996 (Lei de Propriedade Industrial). Essa lei é claríssima com relação à supracitada indagação: Seu artigo 10° excetua, expressamente, da patenteabilidade os "programas de computador em si" (inciso V), "concepções puramente abstratas" (inciso II) e "métodos matemáticos" (inciso I), como os algoritmos (concepção lógica abstrata subjacente a um programa de computador, tal qual entendido pela Ciência da Computação).




Sujeitos invertidos

Portanto, quando, na mesma sentença em que se defende (não fica claro contra o quê) pela lei de direito autoral, a microsoft incentiva aquilo que o contexto denota como violação da lei brasileira de propriedade industrial (afinal, ela vende licenças de programas de computador "em si", como se pode ler nas suas próprias licenças), cabe levantar o próximo ponto: Seria o tal "desentendimento" brasileiro algo induzido pelo uso reiterado e incauto de termos excessivamente ambíguos, como por exemplo, "propriedade intelectual"? Pergunta que nos leva à frase seguinte da citada matéria:

"A defesa indica mais um capítulo no combate da empresa de Seattle à postura dos defensores do software livre, que advogam a abertura do código para serem adaptados por qualquer pessoa."

É difícil imaginar uma afirmação que possa, nesse contexto, ser mais enganosa a respeito da postura dos defensores do software livre.

Defensores do software livre não advogam a abertura de código de quem não deseja abrir o seu. O que eles advogam é o respeito à licença com que autores de software livre distribuem suas criações. Se as licenças da microsoft têm caráter amplamente restritivo, tratam seu objeto como bem rival, e estruturam a base rentista dos seus modelos negociais com efeitos aprisionantes, e se as licenças livres cedem desonerosamente amplos direitos de usufruto e difusão, tratam seu objeto como bem não-rival, e restringem só o necessário para proteger o caráter livre dessa difusão, a pergunta que cabe é: qual desses tipos de licença é legal? A resposta é: ambos.

Ambos tipos de licença se amparam no mesmo núcleo do direito autoral, em regimes jurídicos aderentes à convenção de Berna, firmada por centenas de países incluindo o Brasil e os EUA. Além disso, com quinze anos de uso não se conhece uma só sentença judicial que declare ilegal uma licença livre. Assim, dado o contexto, não se pode entender esse "capítulo no combate da empresa de Seattle à postura dos defensores do software livre" senão como insinuação de que esses defensores ou querem se meter nos negócios dessa empresa, ou violar a Lei. Ambas falsas, a menos que se invertam os sujeitos na frase, como veremos.




Confusão acidental?

A adesão de um autor de software ao regime de licenciamento livre subentende, como já dito, a decisão de tratar um bem não-rival (seu software) como bem não-rival. Isto significa que se o autor lhe der uma cópia do software, ele continua com o mesmo software. E se você me der uma cópia da sua cópia, continua podendo usufruir da sua. E eu da minha, e esse fato tem importância na formação de uma base rentista para o regime de código aberto, em moldes diferentes daquela.

Se tal decisão causa estranheza a quem sempre lucrou com a decisão oposta, subentendida no regime proprietário, particularmente a quem não entende como e por que ela leva à produção de softwares de qualidade, capazes de competir com equivalentes proprietários no grande filão do mercado (o segmento corportativo), inclusive com a adesão de empresas tão poderosas como a microsoft, seria mais sadio e produtivo ao comunicador tentar entender o fenômeno do que denegrir com falácias o regime concorrente, confundindo ainda mais o público leigo.

O que nos leva ao próximo ponto: Seria acidental a confusão espalhada pelas poucas linhas aqui citadas, fruto de deslizes de um jornalismo superficial e apressado? Ou seria proposital, peça que se encaixa numa estratégia midiática maior, de espalhar medo, incerteza e dúvida nos mercados e na opinião pública na tentativa de manter, a qualquer preço, modelos negociais que obsolescem com a hiperconectividade crescente dessa nossa sociedade em rede?




Ameaças claras

Em relação ao incentivo à violação da Lei de propriedade industrial brasileira, o padrão é claro. Induzir interpretações falaciosas e fantasiosas da Lei, não só na opinião púbica, mas principalmente, no organismo do Estado responsável pelo registro de patentes, para depois municiar lobbies junto ao poder legislativo, pela "adequação" da Lei à "realidade". Como feito e fartamente documentado na União Européia, e em estudo apresentado na II Conferência Latino-americana e do Caribe sobre Desenvolvimento e Uso de Software Livre da UNESCO, em dezembro passado.

Em relação a práticas negociais e dispositivos abusivos em licenças, à luz do direito autoral e ordenamento jurídico vigentes, os fatos falam por si. Como ilustra mais essa passagem na citada matéria:

"De acordo com as leis truibutárias, o Brasil entende o software ora como produto, ora como serviço, mas nunca como conteúdo protegido por direito autoral -- como um livro, que o comprador não pode reproduzir e alterar o conteúdo -- explica um dos estudiosos" [no livro que a Microsoft financiou e que a matéria divulga].

Uma coisa é a Lei que protege o autor de software contra uso indenvido de sua obra, outra coisa são as leis que protegem a sociedade e o Estado contra sonegadores de tributos na exploração comercial dessa obra. Tais leis não se conflitam nem se excluem, sendo que a primeira (Lei 9609 de 1998) se baseia explicitamente, como já citado, no direito autoral "conferido às obras literárias".

Essa passagem é infeliz não apenas por tão disparatada falaciosidade, mas também pela enganosa caracterização do exemplo que oferece. Se conteúdos de livros não podem mais ser reproduzidos parcialmente e alterados recombinadamente pelo intelecto dos leitores, é melhor abandonarmos a cultura da escrita e voltarmos à oralidade de 6 mil anos atrás. No mais, o direito autoral permite, sim, que o editor de um livro autorize, a seu critério no próprio livro, a reprodução completa do seu conteúdo. Deve haver motivos para tanta confusão.

As políticas de "defesa dos interesses americanos" incluem os das multinacionais que financiam campanhas políticas nos EUA, dentre as quais a microsoft. E eis que em outubro passado o governo sul-coreano, tendo aberto investigações sobre alegadas práticas monopolistas predatórias da empresa, foi por ela ameaçada, com a intermediação até de Henry Kissinger. Se o resultado da investigação não agradar à empresa, ela poderá "retirar" suas licenças "do mercado" sul-coreano.

Ná prática, a chantagem faz sentido. As 16 portas de fundo do Windows XP, ali entranhadas sob o pretexto de permitir à empresa "gerenciar sua propriedade intelectual", podem ser usadas para implodir a infraestrutura digital sul-coreana baseada nesse sistema operacional. Não no sentido físico em que o Veículo Lançador de Satélites brasileiro implodiu em 2003 em Alcântara, mas em sentido virtual, que pode, entretanto, ser tão ou mais catastrófico. Algumas licenças da empresa, como a do FrontPage 2002 por exemplo, trazem claro gancho para tais ameaças:

"You may not use the Software in connection with any site that disparages Microsoft, Microsoft Network, The news services Microsoft NBC, Expedia, or their products or services ... "





Intimidação e extorsão

Para entender a reação da empresa contra a Coréia do Sul, desproporcional em relação a condenações que transitam ou já transitaram em julgado noutras jurisdições por acusações semelhantes (a folha corrida da empresa tem várias páginas), talvez ajude conhecer o interesse, e as razões, do governo sul-coreano em promover o uso e o desenvolvimento de software livre.

Contra o Brasil, o governo dos EUA vetou recentemente a venda de aviões da Embraer à Venezuela, por conta de licenças parecidas com a do XP, de softwares proprietários embarcados na eletrônica do Tucano. A julgar pelas reações, Brasil e Coréia do Sul devem ter motivos para levar a sério suas atuais políticas de informática, em defesa da autonomia tecnológica e soberania semiológica no mundo de hoje. E não se iludam os vassalos neoliberais, pois a passividade diante dele não garante melhor tratamento.

Matéria do jornal El Diario (eletrônico) nos informa de uma ação judicial cujos autos revelam táticas ilegais com que a microsoft e outras empresas monopolistas de software proprietário, e/ou suas filiais, intimidavam para extorquir grandes clientes no México. Teriam até falsificado provas e testemunhos para acusar de pirataria uma das maiores empresa de contabilidade do país, a CCC. Pelo que o Tribunal Superior de Justiça do Distrito Federal (TSJDF) do México lavrou, em 12 de dezembro passado, sentença cível no valor de 90 milhões de dólares, em favor da CCC.





Para acudir leitores

Vassalando ou não o vizinho império, o México parece mesmo atrair abusos de multinacionais lá sediadas. Na edição de 15.2.2006, a revista Carta Capital relata, na matéria "O Imperialismo da grosseria", que o Hotel Maria Isabel Sheraton, um dos mais luxuosos da capital mexicana, acatou ordem de Washington à matriz e expulsou uma delegação de 16 cubanos que iriam ali participar de um encontro com empresários do setor energético, e ainda lhes confiscando o pagamento que haviam adiantado pela estadia. A matéria encerra com o seguinte comentário:

"Só falta bloquear os computadores de quem ousa usar softwares Microsoft ou Apple para criticar políticas de Washington."

Carta Capital deve ter de pronto recebido um e-mail, remetido à seção "cartas de leitores", comentando que, pelo andar das carruagens coreana e brasileira, não falta muito. Mas o comentário não foi publicado no número seguinte. Foi publicado, na contracapa, propaganda da microsoft. Apesar de me parecer a melhor revista impressa no Brasil, entendo que Carta Capital tenha lá suas prioridades.

Desta sorte, para acudir leitores interessados em superar o "desentendimento" brasileiro nessa estória de licença de uso, direito autoral, patentes, propriedade intelectual e software livre, e também do que está mesmo em jogo com tudo isso, recorremos ao Observatório da Imprensa e a outros veículos independentes. Ainda bem que ainda os temos!



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